Bruno ou o sabor irreverente da Amizade

Conheci o Bruno em 2003 num evento da Liga Portuguesa de Deficientes Motores. Ele tinha acabado o seu curso e estava à procura de emprego. Eu estava a apresentar um projecto de posto de trabalho acessível. Quando lhe perguntei o que achava do meu trabalho, respondeu “Less is More”. Não percebi a resposta, não estando habituada à sua forma de falar. À terceira tentativa, impacientou-se e escreveu no computador. Percebi imediatamente que tinha que treinar perceber o Bruno e que, sobretudo, queria muito perceber o Bruno. Olhei outra vez para o computador, onde tinha escrito, por baixo da resposta, o seu e-mail. Nunca mais largámos a alma um do outro. As amizades também são à primeira vista ou à primeira gargalhada.

Nestes 22 anos, rara é a semana em que não conversamos um pouco, num qualquer intervalo dos nossos trabalhos. Usamos o messenger do Facebook, mas também o email. Por vezes é só um olá, por vezes uma sugestão de ver um filme ou uma série nova, muitas vezes falamos de nós, acompanhamos os passos da vida um do outro e das pessoas que nos são queridas. Perdi a conta às nossas idas ao Santini e à nossa peregrinação anual ao Festival de Banda Desenhada da Amadora, onde tiramos sempre fotografias bastante cómicas! Teatros, cinemas, exposições, passagens de ano, jogos de futebol, passeios, bifanas que ficaram para a história! Tudo o que nos predispõe a um dia bem passado, sendo que o Bruno não gosta de frio e eu não gosto de calor… Mas tudo se organiza para o bem-estar de todos os envolvidos. E mobilizamos sempre familiares e amigos, alargando o abraço a pessoas queridas e interessantes, com quem nos envolvemos como numa grande e risonha onda.

Claro que também já esbarrámos em escadas inesperadas ou caras antipáticas mas quando isso acontece, se não passa um, não passa ninguém e seguimos para outros percursos que sejam acessíveis e apetecíveis Por uma ou duas vezes fizemos uma queixa formal por falta de acessibilidade a locais públicos de usufruto de cultura. Outras vezes, já pensando numa futura ida em conjunto, adiantei eu a observação sobre a rampa que faltava aos inevitáveis degraus. Passou a ser um reflexo, estar atenta.

É preciso esclarecer que não conto o Bruno como um amigo frágil. Tem as suas características como eu tenho as minhas. Tive que aprender a amá-lo como ele me aprendeu a amar a mim. Com as nossas especificidades únicas. Mas, se pensarmos bem, todas as pessoas são únicas e valiosas, todos os amigos são raros e preciosos e a dinâmica da relação de amizade é brilhante e criativa, faz de nós pessoas mais completas. Do Bruno, conto com a sua força e com a sua alma grande para me suster nos momentos de embate, para me escolher filmes e livros que sabe que eu vou gostar porque não têm a violência a que tanto tenho horror, para explicar matemática ao meu filho ou para o levar a um concerto dos Metallica. Do Bruno, espero a palavra certa, a poesia inesperada, a sugestão apetecível ou a escolha risível de gelado de marabunta… A vida precisa de ser salgada com humor. Do Bruno, espero, sempre, o inesperado. É uma das razões porque gosto tanto dele.

Temos, assim, muitas coisas em comum e outras tantas diversas. Adoramos escrever e ler. O Bruno é um autor que leio com gosto, adorando em particular a sua poesia e os seus trabalhos de banda desenhada ou filmes. A arte, a literatura e o cinema fazem parte constante das nossas partilhas. A paixão pelos gatos também. Reparar em conjunto em tudo o que nos cerca para nunca deixarmos de nos maravilhar com a vida. Reparar de mão dada o que se pode, de nós mesmos, quando a mesma vida nos faz tropeçar.

Assim passaram estes anos todos e, como todas as amizades robustas, belas, construídas em conjunto, perpetuadas pelos gestos mais simples, pelas memórias mais queridas e sorridentes, por cá continuamos. De vez em quando, ainda pergunto ao Bruno: “diz lá outra vez…” De vez em quando ainda lhe conto quando tenho medo de alguma coisa. De vez em quando as almas abrem, de vez em quando as almas sorriem.  As amizades são um belo caminho.

Na verdade, temos crescido juntos e nesta amizade que já abrange as nossas famílias se centra em simultâneo uma paz muito grande e uma inquietude imensa e intensa por tudo o que de novo procuramos em conjunto. Simplesmente, o Bruno sabe ser o melhor amigo do mundo e faz parte da estrutura emocional em que fundamento a minha vida, em que me fundamento para respirar e para olhar em frente. Sem degraus.

Maria Romeiras Amado

Carnaxide, 27 de Janeiro de 2025