Amor Construção

Filipa e Caíque
Porque amor também é construção, não podíamos perder a oportunidade de conhecer melhor a Filipa Leça e o Caíque (…) que estão prestes a ser pais e dar os primeiros passos na construção da sua família.
Numa sociedade que vê a possibilidade de pessoas com deficiência constituírem família algo impossível ou até a evitar, como vemos com a possibilidade de esterilização forçada de meninas e mulheres com deficiência, fomos perceber como está a ser vivenciada esta gravidez e como nasceu este amor prestes a dar frutos.
Entrevistadora (E) – Olá Filipa, a primeira pergunta que me surge é, como é que tu sentes que foi a tua experiência de descobrir o amor? Todos nós, a certa altura, descobrimos que amamos e descobrimos que temos essa capacidade. Como pessoa com deficiência, sentes que isso foi diferente do que tu vês nas outras pessoas?
Filipa (F) – Sinto que não, porque eu sinto que também é um bocado de cada pessoa, por exemplo, eu tive muitos namorados, aliás, desde os meus 15 anos, salto de relação em relação e nunca tive problemas com isso. Os problemas que tive acho que foram os problemas que as relações têm, não é?
(E) – Mas, por exemplo, a tua família, tu vives com os teus pais?
(F) – Já não. Agora vivo com o Caíque.
(E) – A tua família nunca te pôs restrições, não foi superprotetora em relação a esta questão do amor?
(F) – Sinto que não. A minha avó é um bocado, não propriamente superprotetora, mas é tipo… mas ligado à deficiência, ela trata o meu namorado atual, como se um santo, mete-o num pedestal por estar comigo.
(E) – E é mais a tua avó que faz isso?
(F) – Sim. O meu pai, pronto. O meu pai é o que mais me superprotege, mas isso é normal. É pai.
(E) – Sentes que não é por causa da deficiência, é por ser o pai e proteger a menina, é mais isso?
(F) – Sim.
(E) – E como é que tu e o Caíque se conheceram?
(F) – Foi online.
(E) – E tu disseste logo que tinhas deficiência ou foi difícil de dizer?
(F) – Eu tenho uma conta no Badoo. É um site de encontros. Tinha, já não tenho (risos). Nessa conta, como tive umas certas experiências, em que quando dizia que tinha deficiência, a pessoa não queria sair, resolvi pôr uma foto.
Só que o Caíque, que não viu a foto.
Diz que no nosso primeiro encontro, reparou logo… que tinha uma condição, mas isso não impediu.
(E) – Sentes que ele reagiu como se não fosse nada?
(F) – Sim.
(E) – Mas tu achavas, como tinhas posto a foto, que ele já sabia?
(F) – Sim.
(E) – E vocês namoram há quanto tempo?
(F) – Um ano e tal, está quase a fazer dois anos. Agora em fevereiro.
(E) – Ser mãe era uma coisa que tu querias, que fazia parte das tuas ambições de futuro? Era uma coisa que tu pensavas?
(F) – Eu queria, mas estava a pensar ir por outro caminho, adotar e assim. Mesmo por causa… Eu sou uma pessoa muito medricas.
(E) – Tinhas medo da parte do parto e isso?
(F) – Era mesmo a da gravidez. Eu ouvia que as pessoas estavam sempre a vomitar.
(E) – Mas o facto de teres deficiência também te condicionava a essa vontade de ser mãe?
(F) – Eu sinto que a deficiência é uma… condiciona-me a muita coisa, mas…
(E) – Tu tentas que te condicione o mínimo possível?
(F) – Eu sei que tenho as minhas limitações, mas não… Não fico, tipo… Ah, tenho uma deficiência. Não me sinto menos por causa disso.
(E) – Tu tens assistência pessoal?
(F) – Todo o dia.
(E) – Trabalhas?
(F) – Não. Estou num mestrado.
(E) – Estás a fazer mestrado em que área?
(F) – Marketing e negócios digitais.
(E) – Quando tu descobres que estás grávida, como é que isso foi? Ou seja, voltando um bocadinho atrás, tu estavas a pensar mais em adotar, ou seja, não foi propriamente uma gravidez planeada, certo? Descobres que estás grávida, então, e como é que isso foi a vários níveis? Para ti e depois para o mundo?
(F) – Foi interessante. Interessante. Porque, eu quando descobri, demorou a cair a ficha. Tipo, vi o teste, mas eu fiquei tipo… Não sei descrever, mas… foi aquela coisa que eu mais… Quando eu estava a começar a comprar as coisinhas e isso, é que eu comecei a pensar, calma, isto está mesmo a acontecer.
(E) – E a tua família, os teus amigos, o Caíque, qual foi a reação do Caíque?
(F) – O Caíque? Quando eu lhe contei, foi muito estranho também, porque ele nem disse nada, só sorriu e beijou-me. Eu fiquei até um bocado com a sensação de que ele já estava à espera, mas… mas foi bom. Depois eu esperei três meses até para contar a toda a gente.
(E) – Como é que a tua mãe reagiu quando soube que estava grávida?
(F) – Ela não… Nem acreditou, mas no caso dela acho que foi pela idade.
(E) – Por ainda seres muito jovem?
(F) – Sim. E por ainda estar a estudar.
(E) – Mas a primeira reação foi assim, um bocadinho mais… assustada, se calhar?
(F) – Sim, ela não disse nada, mas… ficou assustada. Ligou logo para o centro de saúde, a pedir aquele teste de saúde. Mas depois eu fui fazer. E eu sei que a forma como se dá a notícia às pessoas influencia muito. Então eu… pronto, não foi… Mãe, estou grávida e agora? Não, disse mesmo “Mãe, vais ser avó” com um grande sorriso.
(E) – E ela ficou contente também?
(F) – Sim.
(E) – Alguma vez tinha sido tema de conversa entre ti e a tua mãe a possibilidade de um dia seres mãe?
(F) – Não.
(E) – Tu és filha única?
(F) – Sim.
(E) – Achas que a tua mãe achava que nunca ia ser avó?
(F) – Não faço ideia.
(E) – E em relação ao resto das pessoas? Os teus amigos, as pessoas com quem tu estudas, qual foi a reação?
(F) – Ah, eles ficaram todos felizes, ao que parece.
(E) – Não sentes que, por teres deficiência, que alguém tenha tido uma reação do tipo “ai jesus, uma mulher com deficiência grávida”?
(F) – Não.
(E) – Então agora vamos para a outra parte. Já me contaste, tiveste umas experiências menos simpáticas a nível do pessoal médico, não é?
(F) – Foi no início, no Centro de Materno-Infantil. Não me lembro bem, mas disseram à minha assistente pessoal, “parecia-me que ela tinha dito que estava grávida”. Foi assim, uma coisa do género. Mas eu pedi logo para mudar de hospital, fui para o hospital de Gaia. Estou com uma obstetra que me adora. Ela é supersimpática, muito jovem.
(E) – E em nenhum momento sentes que há resistência? A obstetra e todo o resto do pessoal, quando vê uma pessoa numa cadeira de rodas, com as limitações que tu tens, com essa barriguinha, qual é que sentes que é a reação?
(F) – Para já… Eu noto até que tem sido bastante bom. Tipo… Por exemplo, eu sempre me preparei também. Já no início, quando eu descobri, eu pensei… Ah, não vai ser nada fácil lidar com o preconceito das pessoas. Mas não, tem sido supertranquilo. Até nas lojas de shopping. Quando eu vou comprar alguma coisa, são superacessíveis em tudo.
(E) – Achas está a começar a haver alguma mudança de mentalidades?
(F) – Sim. Eu me lembro uma vez que fui à Chico. Fiquei muito espantada porque… estávamos lá e queríamos uma daquelas cintas pré-parto. E eu… Eu estava com a minha mãe e o Caíque. E a menina da Chico falou só para mim. E depois é que disse… “Ai, desculpe, a cinta é para si, não é? Eu estou a presumir que é para si.” E eu… sim é para mim, obrigado.
(E) – Isso é muito interessante porque é a percepção que tenho e infelizmente sabemos que é, muitas vezes, a realidade, é que a reação das pessoas a este tipo de situação não costuma ser a melhor. Porque acontece-vos muito falarem com a pessoa que está convosco, não é?
(F) – Ontem eu fui de manhã à KIABI comprar roupa de bebê. A minha assistente pessoal estava a empurrar-me e tudo, nem sequer levei motor. E a minha assistente pessoal foi comigo à caixa e eu fiz as perguntas à menina e ela falou para mim.
(E) – Saindo um bocadinho do tema da gravidez, sentes que há uma evolução em relação a isso? Que já te aconteceu mais vezes falarem com a pessoa que está contigo e que agora, ultimamente, as pessoas falam mais contigo? Achas que as mentalidades estão a mudar?
(F) – Sim, mas sinto mais isso quando o pessoal é novo.
(E) – As pessoas mais velhas têm mais tendência a infantilizar e a falar com o acompanhante?
(F) – Sim. Mas, por exemplo, em relação a isso, estou agora com uma questão, porque eu gostava de pôr o Dinis (o bebé) a ser seguido na pediatria do Trofa Saúde. Só que eu tenho más experiências no Trofa Saúde. Os médicos sempre falam para os assistentes pessoais.
(E) – Os médicos da Trofa Saúde fazem isso com frequência, ok.
(F) – Eu já reclamei várias vezes. Aliás, uma foi por vossa causa, até, por causa do Dia da Reclamação?
(E) – Se tu sentes que és mal atendida lá, porquê é que gostavas de pôr lá o Dinis?
(F) – Porque é perto.
(E) – Mas tens receio que o atendimento, quer a ele, quer a ti, não tenham qualidade porque há algum preconceito?
(F) – Qualidade eles têm, mas…
(E) – Mas o atendimento, a forma como te tratam, não te agrada?
(F) – Sim, enerva-me muito, por exemplo, falar para minha a assistente pessoal, em vez de para mim. Isso enerva-me muito.
(E) – Pois, imagino que sim.
(F) – Nessa reclamação que eu fiz, responderam, a médica respondeu. E basicamente, eu até poderia ter respondido à reclamação mesmo para o superior. Foi o que me apeteceu. Mas… achei melhor deixar quieto. Porque não valia a pena. Porque a médica mandou-me, tipo… Eu expliquei tudo, é a minha assistente pessoal, mas a consulta é para mim. E ela basicamente voltou a chamar a assistente pessoal de cuidadora/auxiliar e disse que ela é que me administra os cuidados de saúde. Eu fiquei a pensar que eu ter reclamando não adiantou de nada.
(E) – Agora, e o futuro? Como é que tu estás a preparar-te para abril (quando nasce o bebé)?
(F) – Eu já tenho todas as coisinhas. Estou muito ansiosa. E já estava a planear, desde o início, para aí em dezembro, ficar sempre de cama.
(E) – Mas porque é que tinhas essa ideia de que ias ficar de cama?
(F) – Falam muito mal da gravidez.
(E) – Então, achavas que em dezembro ias ficar de cama? Em dezembro, estavas o quê? Com seis meses?
(F) – Sim. Era o terceiro trimestre. Achava que já ia estar, tipo… quase a morrer.
(E) – Tu conversas com alguém sobre esses receios que tens da gravidez?
(F) – Normalmente com as minhas assistentes pessoais.
(E) – E a obstetra? Já partilhaste esses receios com a obstetra?
(F) – Não, porque também lá está… Mal eu contava isso a minhas assistentes pessoais elas diziam que cada gravidez é uma… Eu é que estava com o estereótipo…
(E) – Do que é uma gravidez? Estavas com aquela ideia que te passaram, que tu foste ouvindo ao longo da tua vida, de que a gravidez era uma coisa muito dramática, mas não estás a sentir nada disso?
(F) – Não.
(E) – Tiveste enjoos e assim?
(F) – Eu no primeiro trimestre passei mal. Com os enjoos e não sei o quê. Também cheguei a desmaiar algumas vezes, mas desmaiar acho que já foi no segundo, porque eu tenho tensões muito baixas.
(E) – Mas… E agora, já estás… Não falta muito, já estás no terceiro trimestre, estás a entrar no terceiro trimestre?
(F) – Sim.
(E) – Como é que te sentes? Não só do ponto de vista físico, mas do ponto de vista emocional. Sentes-te preparada para ter um bebê?
(F) – Sim, mas… Eu sinto que a minha… capacidade de adaptação… é muito boa. Também devo muito isso à deficiência. E não estou a fazer… tipo um bicho de sete cabeças.
Aliás, por exemplo… estou agora a lembrar-me. Por exemplo, no meu CAVI, houve umas pessoas que… Umas pessoas, na verdade só uma. Que… Que estava sempre a perguntar e não sei o quê. Por causa do cuidar do bebé.
(E) – Mas era um técnico ou era também uma pessoa com deficiência?
(F) – Destinatária.
(E) – Destinatária, uma pessoa com deficiência também. Com preocupações de se serias capaz de cuidar do bebé?
(F) – Sim. Porque… no caso dela eu sinto que sempre foi uma coisa que ela quis. Mas que… devido à deficiência…
(E) – Não pôs em prática? Foi condicionada pela questão da deficiência? Ok, então achas que se calhar há ali uma certa tristeza?
(F) – Ela estava sempre a falar do cuidar. Como é cuidar dele, não sei o quê.
(E) – E o que é que lhe dizias?
(F) – Sempre disse, eu vou cuidar dele. A minha assistente pessoal vai me ajudar… no que eu precisar. Exatamente como o resto da vida. E o pai também tem de ser pai.
(E) – E sentes que o Caíque está contente? Está envolvido?
(F) – Sim, eu acho que… foi até uma questão que eu reparei. O Caíque também, tipo… Ele sempre foi um bocadinho distraído de tudo. E eu sinto que ele também está mais responsável. Tipo, lê coisas, procura coisas, informa-se. No outro dia, ontem, já foi ao shopping, que é uma coisa que ela odeia, mas comprou três camisolinhas.
(E) – Olha, em relação ao Caíque, outra questão que me ocorre. Vocês conseguiram, nessa relação, juntar duas discriminações. Há a questão do capacitismo, porque tens deficiência e ele não. E há a questão que tu és branca e ele é negro.
(F) – Sim.
(E) – Qual é que tu achas que é mais visível, que vocês sentem mais? Se é que sentem alguma.
(F) – Eu acho que sentimos ambas as partes. Porque, supostamente, como ele é negro, é um homem mau. E como eu sou branca e estou na cadeira, sou indefesa. Já aconteceu todo o tipo de coisas que se possa imaginar.
(E) – Sentes que há pessoas que pensam que ele se está a aproveitar de ti?
(F) – Sim. Inclusive, acontece, estarmos num passeio, ele abraça-me e param carros, para ver se ele não me estava a fazer mal.
(E) – Sério? Mas isso já aconteceu mais de uma vez? Pararem carros?
(F) – Duas.
(E) – Duas vezes? Parar em carros para ver se ele…
(F) – Em zonas diferentes.
(E) – É o que tu dizes. Ele é o estereótipo do homem mau, não é? E tu és o estereótipo do cúmulo da fragilidade.
(F) – E… Já me aconteceu. Eu ando sempre com uma bolsa aqui atrás. Já aconteceu ele vir tirar o casaco, virem pessoas a correr. Agarrarem nele. “Ele está a roubá-la”.
(E) – E depois como é que reagem quando… vocês têm de explicar a situação, não é? Como é que as pessoas reagem? Ficam sem reação?
(F) – Sim, um bocado. Eu acabo sempre, no fundo, por agradecer também.
(E) – Porque as pessoas estão a fazer isso por preocupação, é isso?
(F) – É que eu penso, por acaso, ele é um namorado, mas e se fosse outra pessoa?
(E) – Vou fazer-te uma última pergunta. Que é sobre o Dinis. Estás com muita vontade de ver o teu filho?
(F) – Sim, imensa. Já só faltam quase dois meses.
(E) – Tu falavas dos receios e da ansiedade.
(F) – Mas a vontade de o ver é superior.