Uma verdadeira história erótica que nunca aconteceu

Ele subiu acelerado pela rampa do autocarro para o lugar reservado a cadeiras motorizadas como a sua.
A viagem começou. Só então aí a sua respiração acalmou. Refastelou-se, com as mãos entre as pernas, e deixou a mente embalar-se pelo ritmo do asfalto.
Quem o visse, ali agora tão sereno, apesar do seu corpo estrambalhado, jamais suspeitaria dos infernos irascíveis com os quais sempre sonhara acordado. Era como um vulcão em erupção sob um plácido lago gelado; e ele adorava cultivar para si aquela imagem «doriana».
OS ANJOS NÃO TÊM SEXO, ASSIM COMO OS ‘DEFS’; repetia ele, perante quem o ouvisse, aquele seu mantra pantomineiro.
Mas naquele disfarce, que recitava, não havia qualquer malícia. Era somente como um jogo, o incarnar tão bem um papel em que ele próprio chegava mesmo a acreditar.
ESSA É A MAIOR ARTE!, A REALIDADE É O TÉDIO DE SÓ PODER SER O QUE É, HÁ POIS QUE SABER REINVENTÁ-LA; também apregoava, porém só para os seus botões, pois aquele sim era o seu verdadeiro credo.
Lá fora, entre as paragens, corriam as sucessivas montras engalanadas de corações recortados anunciando a cada vez mais próxima efemeridade valentina, o bispo que perdeu a cabeça por amor. Havia uma ironia tão literal naquilo que o deixava deliciado.
Ele também, por amor, por tesão (ainda que com um significado mais brasileiro do que luso), ou fosse por que fosse… desde que a vira pela primeira vez, perdera igualmente o tino.
E passara a apanhar religiosamente aquele carro para lado nenhum, apenas para todos os dias a poder reencontrar e ao longe mirá-la. De soslaio, encantado, como uma ninfa espectral que só se permite ser desvendada pelo cantinho do olhar; e nunca de frente, nunca persistente, ou fosse essa insistência denunciá-lo, e isso depois incomodá-la.
Era aquele o seu maior receio, importuná-la com a mera noção da sua existência, do seu desejo descabido… desmedido.
Ela, que parecia vir constantemente tão atarefada, carregando sacos das compras ou livros ou inclusive tarjas enroladas e bandeiras entre as mãos, era-lhe daquele modo uma imagem quase de névoa, os seus cachos cor de Outono repousando às oscilações do caminho sob uma pele nívea, como o mármore da República de seios desnudos.
OH MESMO VELADOS, QUÃO MAIS INSPIRADORES AQUELES SERIAM PARA FAZER TOMBAR REIS E DITADORES; suspirava ele secreto ao recordar-lhes as formas robustas sugeridas pelos tecidos leves das blusas que usava: montes de picos olímpicos, baloiçando como pinheiros mansos a cada curva mais guinada e travagem mais bruta.
Não iria mentir, não faria como os poetas, não diria que fora o seu olhar cobreado, nem o sorriso discreto com que dava bons dias a quem a cumprimentasse, ou os seus misteriosos ares que numa improvável fórmula alquímica misturavam recato com igual dose de ousadia, que logo o haviam enfeitiçado nela.
Mas sim… haviam sido aqueles tomos de carne saltitante, em simultâneo tão livres e aprisionados sob a sua roupa, a cativarem-no além de qualquer perdão. Era o seu sabor a pele que imaginava perfurando-lhe a língua, enquanto os percorria e aguçava, lustrosos do seu orvalho a cheirar a bafo de café quente.
E corou, ao perceber que, entre tantos estranhos que partilhavam desapercebidos consigo aquele autocarro, tais pensamentos haviam-no entumecido, vencendo-lhe qualquer aprumo. Contudo aquilo não lhe cessou o delírio, antes o oposto. A sua mente debitava-lhe agora um dilúvio de fantasias… tão impossíveis quão banais, era como um dique por fim rachado por onde toda a luxuria espichava.
Almejava, portanto, ser o reverso de Artur, para cravar Excalibur firme e irresistível em tais rochedos, e na árdua fricção de tal penetração humedecer o vale de Avalon a sul, fazendo assim a senhora do lago reemergir para colher o gládio pelas terras montanhosas então regurgitado, e nessa caverna submersa fecundar um novo reino de Camelot; numa epopeia mágica que faria inveja a qualquer Merlin ou Camões.
Ser o djin de Aladino, libertando de enxurrada todos os seus desejos pelo empenho incansável das mãos dela, suaves e frágeis contra a cálida rigidez da lâmpada que há milénios os encarcerava reprimidos.
Ou nos lábios dela, a trompeta de Josué, derrubando numa melodia habilidosa todos os invencíveis muros dele, destituindo a argamassa dos seus autoinfligidos preconceitos e temores, dando à ruína todos os terrores.
Corpo binário em sinfónica sintonia amassado, Yin & Yang rebelados num uníssono grito de exaltação… excitação:
HOSANA ALELUIA!, cria ouvi-los proclamar em êxtase síncrono.
Até que uma nova paragem retornou-o à realidade. Era ali que ela costumava entrar.
Naquele dia vinha de jardineiras sobre a blusa e um casaco felpudo; excecionalmente nada trazia nas mãos, coisa rara. Mais rara ainda foi a avalanche de gente que depois entrou, empurrando-a sem intenção nem contenção para junto dele.
Quis suster a respiração, sem saber o que mais fazer, sem conseguir atirar os olhos ao chão. O cheiro dela embatia-lhe impiedoso nas narinas, cravos e cinzas. Os detalhes dos seus contornos gravavam-se-lhe em fogo nas retinas, um novo mapa-mundo por onde tanto queria navegar, qualquer cabo atravessar para a sua Índia alcançar afoito, com tantas sedas e especiarias a provar por fim, e bandeira indómita nas suas monções por fim hastear. Ele apátrida fundaria nela o seu estado de bem-estar e querer.
Cruel instante, em que, a milímetros de si, ela as costas lhe virou, para na pega de segurança, que sobre a sua cabeça balançava, melhor agarrar, quando o carro se pôs a andar.
Porém, algo deve ter surgido sem aviso no meio da estrada, pois o autocarro travou brusco, com ela lhe caindo no colo desprotegida, e ele abraçando-a em inédita apta prontidão.
Refeita do susto, olhou-o finalmente; e, enquanto acariciava o braço que inesperado a envolvia, suspirou entre um dos seus ténues sorrisos, como numa desesperada confissão:
– Foda-se, Bruno; ‘tava a ver que não!
Fim
Olsa
Janeiro, 2025