Rede Social de Coimbra

Posted on: 12 Dezembro, 2023

No âmbito das comemorações dos seus 20 anos, a Rede Social de Coimbra organizou uma conversa dedicada à vivência das pessoas com deficiência, moderada pela Sra. Vereadora de Ação Social, sob o mote “O obstáculo não é a deficiência, o intransponível está na estrutura social que nós construímos”. Ou, pelo menos, era o que o programa fazia prever…

Aquilo que aconteceu não foi, nem próximo, do que era esperado. Estavam presentes três pessoas com deficiência física, duas com deficiência intelectual e uma pessoa cega. Desde logo, a diferença de tratamento entre estas “categorias” foi gritante, com uma infantilização e um desrespeito completo relativamente à vida pessoal das pessoas com deficiência intelectual. Esta hierarquização é uma questão particularmente sensível para a comunidade das pessoas com deficiência intelectual, que sofrem constantes agressões devido à descredibilização das suas experiências e à ridicularização das suas partilhas. A simplificação do discurso, a clarificação das perguntas e a transformação em exemplos práticos é uma adaptação necessária para garantir que a sua participação é realizada de forma digna. Ao invés disso, ouviram-se perguntas como “És feliz?”, “Tens namorada?”, que representavam uma invasão da vida privada e da intimidade das pessoas convidadas. Por outro lado, para uma das pessoas com deficiência física, ouviram-se palavras como “sinta-se à vontade para partilhar o que quiser da sua experiência”.

O preconceito subjacente foi permanente ao longo das 2h de conversa, com uma tentativa constante de romantizar a deficiência e de transmitir a ideia de que aquelas pessoas tinham uma vida normal “apesar da sua deficiência”. Ora, nós não fazemos nada “APESAR da deficiência”, mas sim “COM a deficiência, APESAR dos obstáculos que nos são impostos diariamente”. Estes obstáculos não são apenas aqueles que se veem, como as barreiras arquitetónicas. Falamos de atitudes capacitistas como aqueles que experienciámos durante o evento, que reforçaram a ideia de inferiorização e segregação das pessoas com deficiência. Palavras como “meninos especiais”, “necessidades especiais” e outros eufemismos ecoaram várias vezes, sempre numa tentativa de fugir ao elefante na sala: aquelas pessoas tinham DEFICIÊNCIA e, como qualquer outra pessoa, necessidades ESPECÍFICAS. Esta nomenclatura apenas denota o desconforto com a nossa presença e perpetua a desumanização das pessoas com deficiência.

Não posso deixar de referir uma situação específica, aquando da apresentação de uma das notas biográficas. Enquanto a Sra. Vereadora lia “define-se como ativista feminista”, fez uma pausa na descrição e soltou “aliás, como se pode ver: não descura nada, tudo combina com tudo!”. Muitas pessoas acharão que este é um elogio. Na verdade, representa mais um exemplo das constantes micro agressões que nós, mulheres com deficiência, vivemos ao longo da nossa vida. Este comentário, não só transparece o desconhecimento total do que é o feminismo, como mostra uma clara confusão entre ser feminista e feminina (seja lá o que isso for). A imagem e a utilização da maquilhagem jamais definiriam uma ativista feminista (muito menos a sua feminilidade!). Esclareçamos: este é o resultado de anos de luta do movimento feminista, de milhares de mulheres que deram as suas vidas para que todas nós possamos escolher hoje como nos queremos apresentar à sociedade, sem o receio de sermos julgadas, humilhadas ou mortas. A juntar a isto, percebe-se a surpresa pelo facto de uma mulher com deficiência usar maquilhagem, ou até de cuidar da sua imagem. As formas de violência contra mulheres com deficiência são muitas e variadas, em grande parte das vezes não intencionais, mas já não há desculpa: o capacitismo mata, a misoginia capacitista mata em dobro!

Todo o contexto já seria preocupante perante a comunidade em geral, mas foram ainda convidadas algumas escolas de Coimbra, que se inscreveram num evento que teria como objetivo desconstruir e desmistificar os preconceitos, as dúvidas e o desconforto associados a vivência da deficiência. Não só não aconteceu, como se contribuiu para que aquelas crianças e jovens fossem para casa com o reforço da narrativa que a sociedade lhes conta acerca das pessoas com deficiência: que são vítimas da tragédia que lhes aconteceu. Se queremos que as gerações futuras não reproduzam os erros das anteriores, temos de fazer diferente! A postura a que assistimos seria expectável (nem por isso aceitável!) numa qualquer situação do nosso quotidiano, vinda de pessoas sem a responsabilidade social conferida pelo cargo que exercem. Sendo representantes da sua população, as pessoas com cargos políticos são bandeiras da Democracia. Por parte do poder local, não se exige menos que um tratamento digno, uma postura pedagógica e uma prática inclusiva. Este discurso é mais uma forma de desresponsabilização da sociedade, que insiste em não eliminar as barreiras que nos são impostas e, essas sim, verdadeiras tragédias que nos acontecem diariamente.

Ao longo dos séculos, as pessoas com deficiência foram silenciadas e invisibilizadas, sem a oportunidade de reivindicar uma participação ativa na comunidade. Constantemente nos tratam como crianças, mostram-nos que não podemos esperar mais do que a garantia de que o coração continua a bater. Graças à luta das pessoas com deficiência, foram sendo alcançados direitos humanos fundamentais, para que possamos ter uma vida digna e autodeterminada. Portugal ratificou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência em 2009, a Rede Social de Coimbra fez 20 anos. O mote inicial não foi explorado como se previa, mas foi uma descrição perfeita do que se vivenciou ali: “O obstáculo não é a deficiência, o intransponível está na estrutura social que nós construímos”.

Catarina Vitorino

Co-coodenadora da Delegação de Coimbra da Associação CVI – Centro de Vida Independente


Artigo publicado no Diário de Coimbra. Consulte o seguinte link.