Comentário sobre o Relatório de Avaliação Intercalar do Modelo de Apoio à Vida Independente em Portugal
Posted on: 25 Julho, 2022No passado dia 13 de Julho de 2022, o Instituto Nacional para a Reabilitação realizou a “Conferência Pública De Divulgação Da Avaliação Intercalar Do Modelo De Apoio À Vida Independente Em Portugal“, no auditório do CITEFORMA, durante a qual foram apresentados os resultados, pelo Professor Doutor Luís Capucha, coordenador do estudo no CIES-ISCTE. Na sessão de abertura, esteve ainda presente a Senhora Secretária de Estado para a Inclusão, Ana Sofia Antunes.
De acordo com os resultados obtidos, divulgados no relatório redigido pela equipa de avaliação, os ganhos e as vantagens do serviço de assistência pessoal são inequívocos, sendo que os principais contributos apontados pelas pessoas destinatárias foram ao nível da melhoria da qualidade de vida, da promoção da autonomia e da menor dependência em relação à família. Uma larga maioria concorda que este serviço é indispensável e mudou a sua vida. Este impacto positivo é confirmado, tanto por familiares, como por assistentes pessoais e equipas técnicas. Desta forma, as evidências são claras, consistentes e perentórias quanto ao caráter fundamental da assistência pessoal para o empoderamento e a inclusão das pessoas com deficiência na vida em comunidade.
Apesar de a posição oficial do Governo Português ser a de que este relatório não vincula a sua posição em relação ao projeto, ao longo do mesmo, são apontados diversos temas que nos preocupam e que nos suscitam questões. Gostaríamos, assim, de ver clarificada a sua posição relativamente ao explanado de seguida.
Metodologia e resultados
Em primeiro lugar, a Teoria da Mudança, que serve de base ao relatório, entra em conflito com algumas das conclusões apontadas para o futuro do MAVI, como a “diminuição da dependência familiar” e a “melhoria da conciliação da vida familiar, profissional e pessoal das Pessoas com Deficiência e Incapacidade e suas famílias”, uma vez que a secção das conclusões refere várias medidas que, pelo contrário, perpetuam a dependência em relação às famílias e/ou às instituições.
Através dos dados divulgados no relatório, podemos verificar que a maioria das pessoas destinatárias usufrui de 10h semanais de apoio, ou menos. Apesar de grande parte da amostra indicar que as horas estão ajustadas às suas necessidades, é também referido que a maioria das pessoas, e respetivas famílias, pretende aumentar este número. Este valor leva-nos a questionar se as reais necessidades estão a ser, de facto, suprimidas, ou se existe uma cultura de “poupança” relativamente às horas de serviço prestadas. Perante esta incongruência, não entendemos a razão pela qual não são feitas recomendações relacionadas com o aumento do número de horas, ou o controlo do número de horas atribuído versus o número de horas necessário, e se essa atribuição está de facto a ser realizada de forma correta e em consonância com o decreto-lei que rege o MAVI.
Modelo de Financiamento
Relativamente ao financiamento do serviço, o estudo recomenda que a Assistência Pessoal passe a ser comparticipada pelas pessoas com deficiência e/ou suas famílias, como os restantes apoios sociais, tendo em conta os rendimentos do agregado familiar. De acordo com a notícia publicada pelo jornal Público, no dia 24 de julho de 2022, esta recomendação deriva de uma opinião da amostra de dirigentes, sendo que 82,6% destas considera que as pessoas com deficiência e suas famílias devem comparticipar a sua própria assistência pessoal. Sob o argumento de garantir a continuidade e o alargamento da resposta social, ainda que hipotética, esta solução viola a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e põe em causa os princípios básicos da Vida Independente e do próprio projeto.
Primeiro, a própria questão, assim como a quem esta foi colocada, violam a Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e o Comentário Geral Nº 5 da mesma:
De acordo com a Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, no seu Artigo 4º, número 3: “No desenvolvimento e implementação da legislação e políticas para aplicar a presente Convenção e em outros processos de tomada de decisão no que respeita a questões relacionadas com pessoas com deficiência, os Estados Parte devem consultar-se estreitamente e envolver ativamente as pessoas com deficiências, incluindo as crianças com deficiência, através das suas organizações representativas.“.
De acordo com o Comentário Geral Nº 5 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência: “(i) O financiamento para a assistência pessoal deve ser fornecido com base em critérios personalizados e levar em consideração os padrões de direitos humanos para o emprego decente. O financiamento deve ser controlado e alocado à pessoa com deficiência com o objetivo de pagar qualquer assistência necessária. Baseia-se numa avaliação das necessidades individuais e das condições de vida. Os serviços individualizados não devem resultar na redução ou aumento do orçamento pessoal.“. Ainda tendo em conta o que este refere, é da responsabilidade do Estado garantir as condições para que as pessoas com deficiência vivam na comunidade.
Esta recomendação, bem como a questão associada, entram em conflito com o “Model National Personal Assistance Policy”, que refere, no seu número 2, que destinatários de assistência pessoal não devem ser responsabilizados pelo pagamento da mesma, independentemente dos seus rendimentos ou rendimentos do agregado familiar.
Desde logo, e segundo a filosofia de Vida Independente, a assistência pessoal é um pilar fundamental para que as pessoas com deficiência tenham total controlo sobre a gestão das suas próprias vidas e exerçam o direito à autodeterminação e liberdade individual, em condições de igualdade em relação às pessoas sem deficiência. Sendo este um direito humano fundamental, não pode, em circunstância alguma, constituir um fator adicional de exclusão e desigualdade socioeconómica. Ora, a comparticipação financeira por parte das pessoas com deficiência entra em conflito com o princípio da universalidade do serviço, uma vez que irá excluir grande parte das pessoas que realmente necessita devido às elevadas carências económicas, já amplamente documentadas ao nível da comunidade das pessoas com deficiência. Além de representar uma discriminação direta, esta medida reforça o fosso da desigualdade e acrescenta mais uma despesa para as famílias.
De acordo com o Estudo de Avaliação do Impacto dos Custos Financeiros e Sociais da Deficiência, realizado pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, as pessoas com deficiência são penalizadas, financeiramente, no seu dia-a-dia. Esta penalização, em função da discriminação e custos extra dos serviços prestados, varia entre os 5000€ e os 25000€ por ano. Deste modo, adicionar outra penalização ao grupo social que menos rendimento aufere, mais dificuldade tem em obter trabalho ou trabalho devidamente remunerado, traduz-se numa desproporcionalidade apenas, e só, aplicada às pessoas com deficiência.
Por outro lado, calcular o valor da comparticipação com base no rendimento do agregado familiar, ainda que a pessoa com deficiência não viva sozinha, reforça a situação de dependência em relação à família, perpetua a ideia de que a pessoa com deficiência não existe como ser individual e dificulta o seu (já difícil) processo de autonomização e independência física, psicológica, emocional e financeira. Esta modalidade retira também o papel de poder da própria pessoa, levando a família, e os/as próprios/as assistentes pessoais, a confundir o locus de controlo do serviço. Como consequência desta abordagem, poderá ainda estar a colocar-se em risco a integridade física e emocional da pessoa com deficiência, que ficará mais vulnerável a abusos, negligência e manipulação por parte de familiares e coabitantes.
Além disto, é apontada a questão da sustentabilidade económica da resposta como uma justificação para a recomendação em causa. Tratando-se de um direito fundamental, a vertente económica não pode orientar a ação e a visão estratégica do processo. À semelhança das áreas da Educação e da Saúde, a presente área vale per se, no sentido de garantir as melhores condições aos seus cidadãos e cidadãs para que tenham uma vida digna e plena, independentemente das circunstâncias.
Consideramos ser esta uma das principais razões (entre outras) para que a gestão do projeto não deva estar a cargo de IPSSs, cujo modelo de negócio assenta na comparticipação pelos serviços prestados. Consequentemente, as equipas técnicas dos CAVI não são isentas nas suas opiniões sobre os modelos de financiamento a adotar na futura legislação. Neste sentido, os CAVI e respetivas equipas técnicas não se podem pronunciar sobre uma medida da política a desenvolver, devendo-se cingir às questões técnicas que não são geridas pelas pessoas destinatárias.
A recomendação assenta no velho pressuposto de que as pessoas com deficiência devem ser responsabilizadas através do pagamento dos serviços que lhes são prestados. Esta é uma forma de penalização desproporcional que não é exigida a mais ninguém, o que consiste num ato de discriminação direta contra as pessoas com deficiência. A responsabilização das pessoas, no caso da assistência pessoal, deverá apenas reportar-se às horas de apoio executadas, férias e outros dados relevantes para aferir a correta aplicação das verbas alocadas ao serviço prestado.
Adaptação de outras respostas e coordenação
Vemos com preocupação a frequente confusão entre assistência pessoal e outros serviços, como apoio domiciliário, CACI, residências autónomas, etc. Além de irem contra o Artigo 19º da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, estes serviços não são controlados pelas pessoas com deficiência e, por isso, violam um dos princípios basilares da assistência pessoal. Esta perda de controlo perpetua o atual estado de dependência em relação a familiares e instituições, não permitindo às pessoas com deficiência exercer o direito a uma Vida Independente.
Apesar de defendermos um modelo de desinstitucionalização, este não pode ser confundido com a criação de residências autónomas ou outras soluções que se configurem como “guetos” onde as pessoas com deficiência são colocadas e controladas por terceiros. Este tipo de soluções tem sido apresentado como formas alternativas às grandes instituições, mas perpetuam o seu caráter desumanizado, despersonalizado e de violação do direito à individualidade, assim como a contínua usurpação dos rendimentos das pessoas com deficiência para manter o modelo financeiro dessas mesmas instituições.
Outros esclarecimentos
Por último, mas não menos importante, acreditamos que a linguagem espelha e constrói o pensamento individual e coletivo, pelo que gostaríamos de esclarecer algumas confusões ao nível da terminologia utilizada ao longo do relatório.
- “Pessoas com deficiência ou incapacidade”: referem-se a duas condições não dependentes. De acordo com o modelo social, no qual assenta o paradigma de base da assistência pessoal, a deficiência resulta da interação entre as incapacidades individuais e o meio ambiente que a sociedade nos proporciona.
- “Assistentes profissionais”: todas as pessoas que trabalham como Assistentes Pessoais são profissionais, não havendo distinção entre pessoas profissionais e não profissionais no âmbito do projeto-piloto em análise.
- “Linguagem gestual”: a nomenclatura correta é “Língua Gestual”, oficialmente reconhecida como língua oficial em Portugal.
Consideração final
Para concluir, se estamos a ser exigentes com o presente relatório, é porque acreditamos convictamente nas potencialidades da assistência pessoal, defendemos a sua implementação com base em direitos humanos e na Vida Independente e não pretendemos ceder em nenhum dos aspetos que consideramos fundamentais para garantir que as pessoas com deficiência tenham uma vida digna, plena e em condições de igualdade relativamente às pessoas sem deficiência. Da parte do Governo Português, na pessoa da Senhora Secretária de Estado para a Inclusão, assim como de todos os organismos envolvidos no projeto-piloto, não esperamos menos que a máxima exigência e o cumprimento pleno dos Documentos Oficiais de defesa dos direitos humanos, tal como nos é exigido a nós, enquanto cidadãos e cidadãs individuais. Terminamos reforçando o pedido inicial de uma resposta às questões aqui levantadas, para que a melhoria do projeto seja baseada num processo de co-criação envolvendo todas as partes interessadas, mas dando o protagonismo devido ao núcleo central de todo o modelo: as pessoas com deficiência.
Este comentário está, igualmente, disponível em versão PDF.
Aditamento: Foi clarificado quem respondeu favoravelmente a que a Assistência Pessoal seja paga, tendo sido alterado de “das equipas técnicas dos CAVI” para “a amostra de dirigentes”. Esta alteração foi realizada no dia 28 de julho de 2022